sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Professor feiticeiro é professor-Babette

 

Caro Professor


Rubem Alves


Não gosto de usar a palavra "professor" porque ela, pelo uso, passou a designar aqueles que ganham a vida ensinando disciplinas em escolas. Mas a verdade é que professores são todos aqueles que estão em contato com as crianças e que, de uma forma ou de outra, as influenciam. Pais, avós, amigos são todos professores. Muitos dos que mais me influenciaram e ensinaram, eu nunca os conheci, pessoalmente. Me ensinaram através dos livros.
Mais difícil que aprender coisas não sabidas é desaprender as coisas já sabidas. Falar em desaprender pode parecer absurdo: desaprender parece ser o oposto daquilo a que a educação se propõe. A educação pretende que as pessoas aprendam e não desaprendam mais. No entanto, Roland Barthes, quando já estava ficando velho, confessou que estava se dedicando a desaprender aquilo que sabia. Por que uma pessoa se daria ao trabalho de uma empreitada aparentemente tola? É porque, frequentemente, as coisas sabidas impedem a aprendizagem de coisas não sabidas. O sabido define um mundo. E, ao assim defini-lo, nos cega para outras possibilidades de vê-lo. Saber ilumina uma pequena área e lança sombras sobre outras. Especialistas na arte de fazer desaprender eram os mestres Zen: eles nada ensinavam aos seus discípulos. Ao contrário: esforçavam-se para demolir os seus saberes, a fim de que pudessem ver o mundo de uma forma diferente. Quando se desaprende os olhos se abrem...Daí o paradoxo: é na ignorância que se recupera a visão. Quem quiser mais detalhes que leia os poemas do Alberto Caeiro. Hegel tem opinião parecida. No Prefácio à Fenomenologia do Espírito ele afirma que aquilo que se conhece com familiaridade não é conhecido, pelo fato de ser familiar. Essa mesma inspiração reaparece na Fenomenologia, que deseja voltar ao ato de ver anterior aos saberes e explicações. Também o Tão Te Ching, livro sapiencial do Taoismo, fala sobre a necessidade de diminuir os saberes a fim de se atingir a sabedoria. Saberes acumulados podem se transformar em algo parecido com uma "prisão de ventre" mental: um bolo sólido de ideias que entope os caminhos do pensamento.
Existe uma enorme quantidade de conhecimentos sobre a educação. Você, professor por profissão, deve sabê-los. Também os pais, preocupados com seus filhos, tratam de se informar, lendo os últimos artigos sobre o assunto. Pois eu quero seduzir vocês a um ato de suicídio intelectual: pôr de lado, por um momento, aquilo que vocês sabem. Fazer o que Barthes fez. Brincar de "fazer de conta" que vocês não sabem o que lhes foi ensinado. Eu mesmo, vez por outra, faço esse exercício. Quando minha cabeça está com "prisão de ventre", resultante de muitos saberes ao mesmo tempo, ideias entaladas, sem se movimentar, eu "esqueço" tudo e me pergunto: Como é que você, com suas ideias (não as dos outros) pensa esse problema? Resulta disso uma enorme simplificação. É preciso ter coragem para pensar os próprios pensamentos, porque somente eles circulam pelo nosso sangue.
Quero sugerir um começo insólito (ele não se encontra em nenhum livro sério que conheço) para o ato de pensar sobre a educação: a afirmação de que professores são feiticeiros. Vocês vão refugar, dizendo que feitiçaria é supertição, coisa que não existe. Digo que é melhor não desprezar uma ideia aparentemente absurda, só porque você aprendeu diferente. Ludwig Wittgenstein, filósofo de lógica impecável e seriedade inquestionável,diz que filosofia é feitiçaria.
O que faz um feiticeiro? Um feiticeiro, contrariando tudo o que diz a ciência, pretende fazer mudanças nas coisas sem tocá-las, usando apenas o poder da palavra. Você se lembra da estória da bruxa que transformou um príncipe em sapo apenas dizendo a palavra "sapo"?... De fato, as palavras são impotentes para alterar as coisas do mundo físico. Mas há um lugar, um único lugar no universo, em que as palavras são potentes para alterar as coisas, um lugar em que a feitiçaria acontece: é o nosso corpo. O corpo "faz amor" com palavras, fica grávido, se altera. Ao afirmar que um professor é um feiticeiro, estou dizendo que muito embora ele pense estar apenas ensinando saberes, a sua palavra está operando transformações mágicas no corpo do seu aluno. Um professor, assim, é responsável não só pelos saberes dos seus alunos, mas pelas transformações que se processam no seu corpo. Como feiticeiro um professor leva avante o processo que se iniciou no ato da fecundação: ele está completando um corpo inacabado. Um professor pode fazer com que seus alunos sejam semelhantes aos pássaros que não têm medo das alturas ou semelhantes às toupeiras, cegas, que têm medo de sair de suas tocas. Assim, faça de conta que você concorda com o que eu disse, que ao educar você é um feiticeiro que opera transformações qualitativas nos corpos do seus alunos.
Faz muito, muito tempo, escrevi um artigo em que, em tom de brincadeira (sempre que falo em tom de brincadeira estou tentando ser feiticeiro...) eu sugeria que a primeira sala de uma escola deveria ser uma cozinha. É que eu acredito que o ato de cozinhar é uma metáfora para o ato de ensinar. Para ser mais universal: o ato de cozinhar é uma metáfora precisa para a arte de viver. Sobre o ato de cozinhar e de viver a mestra suprema é a Babette-reconhecida com justiça e horror como "bruxa", pelos convidados para o seu banquete - do filme que vocês já devem ter visto, e sobre quem escrevi inúmeras vezes. Para preparar o seu banquete Babette necessitava de três coisas. Primeiro, saberes. Ela tinha de saber as receitas. Receitas são entidades espirituais, ideias, que moram na cabeça. Segundo: ela precisava de poderes. Saberes, sozinhos, não fazem comida. Por 14 anos Babette viveu numa vilazinha que só comia peixe de manhã, ao meio dia e à noite. O sonho dela era fazer uma festa em que ela prepararia pratos com os quais os moradores da vila nunca haviam sonhado. Mas, para isso, ela precisava de dinheiro. Dinheiro é poder. Mas dinheiro ela não tinha. Um dia, inesperadamente, ela recebeu a notícia de que ganhara na loteria. Agora sim, ela poderia comprar os vinhos, as codomizes, a tartaruga, as frutas, o café, e tudo o mais que é necessário para se fazer um banquete. Terceiro: os sabores. Toda a sua arte, realizada com saberes e poderes, seria inútil, se os convidados não soubessem apreciar a sua comida refinada. E os moradores daquela vilazinha, acostumados com sua dieta repetida e sem sabor, imposta por uma religião que esperava banquetes nos céus, tinham seus sentidos embotados, não tinham sido educados para o prazer de comer. E Babette lhes oferecia algo estranho, que nunca lhes tinha sido ensinado: comer por prazer. A parte mais deliciosa do filme é quando os convidados, decididos a não ter prazer (tinham medo porque achavam que a comida de Babette era bruxaria) vão tendo seus sentidos sutilmente despertados para o gosto bom da sopa de tartaruga, das "caules au sarcophage", dos vinhos, da frutas tropicais, do café. Até que, ao final, a feitiçaria acontece: todos se transformam em crianças.
Pois é assim mesmo com a educação. Primeiro: são necessárias as receitas, os saberes. Saberes são receitas, razão por que todos os artigos científicos têm a estrutura precisa de uma receita culinária. A vida não se faz sem conhecimento. Segundo: são necessários os poderes. É preciso ter saúde, ter as técnicas, os recursos, o trabalho. Os conhecimentos sem os poderes são impotentes, incapazes de alterar o mundo. Terceiro, são necessários os sabores. Os sabores têm a ver com os sentidos, a sensibilidade. Sensibilidade é a capacidade de degustar o mundo, identificar aquilo que é bom e é belo. É no nível da sensibilidade que acontecem o prazer e a alegria, que são a razão de viver. O banquete é a realização final de tudo aquilo que se preparava com saberes e poderes. Assim é a vida.
Existe a terrível possibilidade de termos saberes e poderes sem ter a capacidade de saborear. Como se a língua, o nariz, os olhos, os ouvidos e o tato tivessem sido amortecidos ou castrados. A comida, caso você ainda não tenha notado, exige a "intersensibilidade" (palavra que acabo de inventar, irmã da Interdisciplinaridade"). O torresmo, para ser bom, tem de fazer o barulhinho típico: prazer para o ouvido. O refrigerante, para ser bom, tem de ter o pinicado das bolhas de gás: prazer para o tato. E tem de ser bonito para os olhos: há pratos que são servidos com flores. E tem de ter o cheiro exótico dos temperos. Tudo isso se consumando na boca. Mas, para isso, os sentidos têm de ser educados. Eles precisam aprender a "prestar atenção".
Professor feiticeiro é professor-Babette: ele se dedica a despertar os órgãos dos sentidos, para que os alunos tenham prazer e alegria no banquete da vida. Se isso não acontecer, tudo o mais terá sido inútil.

O Centro de Referência Virtual do Professor parabeniza os educadores de Minas Gerais, na semana dedicada aos 'professores-Babette'.
CRV - Outubro - 2011

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